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O fantasma do recalque diferencial: quando o diagnóstico precipitado vira prejuízo judicial

"Tem laudo que parece mais uma petição inicial disfarçada. E tem processo que nasce de um diagnóstico que nunca se confirmou.”

— Sobre engenharia apressada, litígio precipitado e os custos da falta de cautela


Entre o alarme técnico e o litígio precipitado: até onde vai a responsabilidade e onde começa o exagero?

“Recalque diferencial”.


Quem escuta essa expressão pela primeira vez dificilmente consegue manter a calma. Soa grave. Soa técnico. Soa como o tipo de problema que pode condenar uma estrutura inteira.


E, talvez por isso, quando aparece em um laudo de vistoria, costuma funcionar como um gatilho automático para ações judiciais: algumas com pedidos de indenização que chegam às centenas de milhares de reais.


Foi exatamente isso que aconteceu em um caso que caiu no meu colo: uma empreiteira sendo processada por suposto recalque diferencial. Valor da causa? Meio milhão de reais.


Mas será que toda trinca é sinal de colapso? Será que todo laudo técnico sustenta, de fato, o pânico que provoca?


Ao longo do caso, fui descobrindo que a resposta, muitas vezes, é não.


Uma palavra poderosa, uma vistoria isolada


A primeira vez que li um laudo mencionando recalque diferencial, confesso: também me pareceu grave.


E é exatamente assim que soa aos ouvidos do cliente leigo. A expressão carrega força técnica, autoridade e urgência. E justamente por isso, tem sido usada como ponto de partida para ações judiciais milionárias, ainda que, tecnicamente, muitas vezes não se sustente.


No caso que chegou ao escritório, a empreiteira havia executado uma obra residencial, e o proprietário alegava a existência de recalque nas fundações. O documento técnico que embasava a alegação fora elaborado por um engenheiro contratado diretamente pela parte autora.


Até aí, nada fora do comum. Mas havia dois pontos críticos.


Primeiro: o laudo se baseava em uma única vistoria visual.


Segundo (e mais grave): o engenheiro que apontou o recalque foi o mesmo contratado para realizar as obras de correção no futuro.


A partir daí, a credibilidade do documento passou a ser objeto de contestação, técnica e jurídica.


O que é, de fato, o recalque diferencial?


Tecnicamente, o recalque diferencial ocorre quando as fundações de uma estrutura sofrem deslocamentos verticais desiguais, geralmente por variações na capacidade de suporte do solo.


Isso pode causar trincas, deformações e, em casos mais severos, comprometer a integridade da edificação.


Me perdoem os engenheiros civis, se aqui cometo alguma simplificação, mas me parece que diagnosticar recalque não é algo que se possa fazer com base em uma visita única ao local.


Suspeitas podem, sim, ser levantadas. Mas a confirmação exige monitoramento contínuo, dados técnicos objetivos e acompanhamento ao longo do tempo.


Cravar a existência da patologia com base em uma vistoria pontual é arriscado. Judicializar com base nisso, mais ainda.


O que a análise técnica revelou


Com o apoio de peritos independentes, conduzimos uma nova avaliação. Não havia recalque. Não havia instabilidade nas fundações.


O que havia era uma falha localizada no sistema de drenagem do talude, que provocava infiltrações e carreamento de solo. A origem do problema? Falta de manutenção da parte autora.


O custo de reparo estimado por nossos técnicos era de R$ 80 mil.


O valor pedido na ação: R$ 500 mil.


O resultado: improcedência do pedido, condenação ao pagamento de honorários sucumbenciais e custas judiciais. Uma tragédia jurídica que poderia ter sido evitada com mais cautela.


Quando o laudo é também um orçamento


O engenheiro que apontou o problema era o mesmo que lucraria com a solução. Não é necessário ser jurista ou perito para perceber o problema disso.


Já tratei, em outro artigo, dos riscos de contratar a execução de uma obra antes de aprovar o projeto, justamente por conta da sobreposição de interesses.


Neste caso, o conflito foi ainda mais evidente: quem assina o diagnóstico já chega com o contrato para executar a correção.


Aos colegas engenheiros, reforço: não se trata de desqualificar o trabalho técnico, mas de reconhecer que a credibilidade de um parecer depende da sua imparcialidade. E ela é colocada em xeque quando o mesmo profissional que aponta o problema apresenta o orçamento para “resolver”.


E os advogados?


Aqui também cabe um alerta direto à nossa classe. Nem todo laudo técnico merece virar petição inicial.


Antes de mover uma ação com valor elevado, é dever do advogado ler criticamente o documento técnico que o embasa. É preciso entender como foi feita a vistoria, qual a metodologia utilizada, se houve monitoramento, e se existe algum interesse comercial envolvido por parte do profissional que assina.


Instrumentalizar o Judiciário com base em um laudo frágil não é apenas um erro estratégico, é um risco ao cliente.


E um risco ético para o advogado que, sem o devido cuidado, contribui para a judicialização de um litígio artificial, emocionalmente carregado e tecnicamente duvidoso.


Laudo não é sentença.


A simples presença de um termo técnico impactante no papel não justifica mover uma ação de meio milhão de reais sem antes fazer as perguntas certas. Qual foi a metodologia? Houve medição em diferentes momentos? Existe segundo parecer? Há conflito de interesses?


Instrumentalizar um laudo frágil em uma ação de alto valor pode não só gerar uma derrota em juízo, como arranhar a relação com o próprio cliente que, iludido com a expectativa de um resultado, sai no prejuízo duas vezes: pela falha técnica e pelo erro processual.


Antes de judicializar, investigue. Antes de condenar, monitore. E, sobretudo, antes de confiar, pergunte: quem assina esse laudo está vendendo também a solução?



A engenharia deve ser instrumento de evidência, não de retórica. O direito deve ser canal de verdade, não de oportunismo.


Recalque diferencial é uma patologia séria, mas precisa ser tratada com rigor técnico, serenidade jurídica e responsabilidade ética. Nem todo laudo é neutro. Nem todo problema estrutural é falha de execução.


E nem todo cliente, por mais bem-intencionado que esteja, tem razão no que vê.


Porque quando o “fantasma do recalque” é mal interpretado, ele assombra o processo inteiro e não poupa ninguém.



Este artigo tem caráter opinativo e informativo, baseado em experiência profissional e análise de caso real, com os devidos cuidados para preservação da identidade das partes envolvidas.


As opiniões aqui expressas não substituem consulta jurídica ou técnica específica. As informações não representam recomendação direta de conduta e devem ser avaliadas conforme o contexto de cada situação. O texto não tem a intenção de desqualificar profissionais ou instituições, mas de fomentar reflexão crítica sobre a prática jurídica e técnica no setor da construção civil.







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